Diminuição do pH dos oceanos certamente terá consequências significativas sobre os ecossistemas marinhos, assim, pesquisadores buscam ampliar pesquisas e ferramentas para compreendê-las

 

 

Os esforços para monitorar as mudanças na química dos oceanos, especialmente a acidificação – quando o pH da água cai devido à maior absorção do dióxido de carbono da atmosfera –, e o seu impacto sobre os ecossistemas marinhos estão crescendo ao redor do mundo, apesar do grande empenho necessário para tais estudos. GOA ON

Desde o início da revolução industrial, o oceano absorveu cerca de um terço do dióxido de carbono (CO2) emitido pelas atividades humanas. Ou seja, sem ele, a quantidade do gás na atmosfera seria ainda maior e as consequências das mudanças climáticas, mais marcantes. Mas essa absorção tem efeitos nas propriedades químicas do oceano, entre os quais está a acidificação.

O pH atual do oceano é, em média, de 8,1, ou 0,1 a menos do que o valor estimado pré-industrial. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) explica que uma mudança de 0,1 no pH pode não parecer muito, mas, como a escala do pH é alogarítmica, tal alteração equivale a um aumento de 30% na acidez.

No ritmo atual, projeções indicam que o pH pode alcançar 7,8 até o final do século, o equivalente a um aumento de 150% na acidez do oceano, nota a AIEA, completando que os ecossistemas marinhos não passam por isso há milhões de anos, e que a alteração está ocorrendo dez vezes mais rápido do que os eventos registrados no passado geológico.

Quais as consequências disso para os ecossistemas marinhos?

Para compreender como a acidificação funciona nos ecossistemas costeiros e no oceano aberto e também os principais causadores da queda no pH e seus impactos sobre a vida marinha, é preciso atividades multidisciplinares de observação e modelagem.

Fazer mensurações e tratar os dados é apenas o primeiro passo, já extremamente trabalhoso. Um sistema estruturado para juntar essas informações e garantir a sua qualidade e comparabilidade, permitindo a geração de conhecimento, é outro desafio ainda maior.

Dada essa complexidade, é preciso que as atividades de pesquisa sejam coordenadas entre os países, notou Libby Jewett, diretora do Programa de Acidificação Oceânica da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA), durante o III Workshop Brasileiro de Mudanças Climáticas em Zonas Costeiras.

A NOAA, em conjunto com diversas agências internacionais, formou, em meados de 2012, a Global Ocean Acidification Observing Network (GOA-ON; a imagem acima mostra as estações de medição), visando juntar em uma rede as observações sobre acidificação que estão sendo realizadas ao redor do mundo por diversos grupos e projetos.

Mas ainda há muitas partes do mundo que não são observadas, ressaltou Jewett.download 2

Da sua parte, a NOAA possui dezenas de estações para a mensuração de parâmetros químicos, físicos e biológicos do oceano, incluindo o pH e o CO2 dissolvido. Novas tecnologias também estão sendo desenvolvidas pela agência, como o 'Carbon Wave Glider (Veja no Youtube)'. O equipamento permite operações de longa duração autônomas devido à propulsão ilimitada fornecida pela energia das ondas e pelo uso de painéis solares para recarregar as baterias.

Em uma de suas áreas de atuação, a NOAA vem dando apoio a criadores de ostras, no noroeste dos Estados Unidos, que já estão sofrendo com a acidificação do Oceano Pacífico e tiveram que se adaptar. Eles precisam tratar a água utilizada nos cultivos para manter a química favorável aos animais.

Elizabeth Brunner e George Waldbusser, da Universidade Estadual do Oregon, constataram que, nas águas sem o tratamento prévio na região, as larvas das ostras parecem formar bem a concha, mas posteriormente apresentam deficiências que as levam a morte.

Em seu portal sobre acidificação dos oceanos, a NOAA disponibiliza dados e informações sobre as estações de observação e outras pesquisas

Efeitos biológicos

A concentração de CO2, íons de hidrogênio e bicarbonato está aumentando no oceano, e a quantidade de íons carbonato está caindo. Essas mudanças na química do carbonato e no pH forçam os organismos marinhos a gastar mais energia regulando quimicamente suas células, explica a AIEA.

Para alguns organismos, isso pode consumir energia que deveria ser usada em outros processos biológicos, como crescimento, reprodução e resposta a outras fontes de estresse.

Muitos organismos que formam conchas são sensíveis a mudanças no pH e carbonato, como os corais, bivalves (ostras, mariscos, mexilhões) e algumas espécies de fitoplâncton – que são a base da cadeia alimentar marinha.

Certamente, os impactos biológicos da acidificação irão variar dependendo do organismo. Nem todos os tipos de vida serão extintos com a acidificação, mas certamente mudanças enormes ocorrerão.

Áreas particularmente vulneráveis incluem regiões de ressurgência (água fria e com pH baixo), os mares próximos aos polos (temperaturas baixas favorecem a absorção de CO2) e regiões de estuários, que recebem descargas frequentes de água doce, segundo a AIEA.

Para conhecer em mais detalhes os efeitos da acidificação sobre a biologia dos seres marinhos, muitas pesquisas vem sendo desenvolvidas, assumindo uma escala menos generalista, focando em processo controladores do sistema carbonático e na fisiologia dos organismos, especialmente nos últimos anos.

Ruy Kikuchi, pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), comentou que, até 2009, apenas cerca de duas dúzias de estudos haviam sido elaborados e que, desde então, este número quadruplicou. As pesquisas são realizadas in situ, mas também em ambientes controlados.

Ele afirma que, por exemplo, no caso das algas coralináceas, os estudos sempre apontam para uma diminuição face à acidificação.

Mussismilia braziliensis

Na UFBA, Kikuchi participou de pesquisas realizadas para avaliar o efeito do aumento da temperatura do mar sobre o crescimento de corais construtores de recifes. Usando a espécie endêmica Mussismilia braziliensis (ao lado), um grupo do Laboratório de Estudos em Recifes de Corais (RECOR) concluiu que o coral apresenta alta sensibilidade ao estresse térmico, ou seja, é vulnerável ao aumento da temperatura.Mussismilia-braziliensis

Em um levantamento mais amplo sobre de branqueamento de corais – causado pelo aumento da temperatura –, o RECOR constatou que, no Brasil, há registros do fenômeno desde o verão de 1993/1994, desde a costa nordeste até São Paulo.

Na costa leste do país, levantamentos desde 2000 indicam que o branqueamento está ligado ao aumento da temperatura. No verão de 2009/2010, as anomalias térmicas alcançaram 1ºC e foi registrado branqueamento em até 40% dos recifes de coral, que, por enquanto, parecem estar se recuperando dos eventos extremos.

No caso das algas, pesquisas que vêm sendo desenvolvidas na Universidade Federal de Santa Catarina têm constatado indícios de uma ‘tropicalização’ dos ambientes marinhos, ou uma ampliação da distribuição de táxons tropicais para áreas mais ao sul.

Paulo Horta, do Laboratório de Ficologia da UFSC, explicou que existem nítidas diferenças oceanográficas ao longo do litoral brasileiro, relacionadas às variações de temperatura e dos impactos ambientais.

A flora marinha brasileira é distribuída em duas grandes regiões, tropical e temperada quente ou subtropical. Entretanto, em suas pesquisas, Horta constatou que existem forças novas, e alterações estão sendo observadas ao longo da América do Sul.

“Há um aumento da riqueza de algas vermelhas em relação ao observado há 30 anos. E recentemente percebemos a chegada de algas que só ocorriam no Nordeste, notamos uma ‘tropicalização’ da região sul do Brasil”, comentou.

Ele sugere que a intensificação das correntes marítimas pode estar aumentando a conectividade entre os sistemas costeiros e oceânicos.

No grupo de Ficologia da UFSC, Horta e seus alunos também estão avaliando o sinergismo dos fatores ligados ao aquecimento global e de outros impactos humanos sobre os ecossistemas costeiros e, consequentemente, as algas.

Em um estudo com as macroalgas Lithothamnion e Sonderophycus, o grupo constatou que o maior aporte de nutrientes, associado ao aquecimento e acidificação do meio, comprometeu o desempenho fisiológico das algas.

Integração

Em nosso país, esforços liderados pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio Grande – FURG culminaram com a criação em dezembro de 2012 do Grupo de Pesquisa Brasileiro em Acidificação dos Oceanos (BrOA). Hoje o grupo é formado por sete instituições e 29 pesquisadores, estando inserido no CNPq.

O objetivo do BrOA em curto prazo é integrar os pesquisadores brasileiros em uma ampla rede nacional de cooperação interdisciplinar em estudos de acidificação, além de contribuir com os programas internacionais em curso. O grupo atua em ambientes distintos ao longo da costa brasileira, desde ecossistemas costeiros e estuarinos até o regime oceânico de águas abertas.

Rodrigo Kerr, da FURG, comentou que o 1º workshop brasileiro do BrOA deve ser realizado na segunda metade de 2014.

A coordenadora do BrOA, Letícia Cunha, pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirmou que ainda não é possível saber se a zona costeira brasileira atua como um sumidouro ou emite CO2.

Ela explicou que isso se deve à heterogeneidade da região, onde o sistema do CO2 é muito regulado pela biogeoquímica e os parâmetros variam muito diariamente e sazonalmente. Além disso, há escassez de dados, muitas vezes esparsos e com resolução insuficiente.

Ela sugeriu que o problema seja atacado regionalmente devido a esta heterogeneidade e citou um exemplo do estuário da Joatinga (Barra da tijuca, RJ), que em 13 horas teve uma variação de pH entre 9 e 6,5.

Segundo Cunha, as análises mais recentes de fluxos globais de CO2 indicam que no sudoeste do Oceano Atlântico há um gradiente crescente sul-norte de fluxos de CO2 mar-atmosfera, e que na região 25ºS-23ºS ocorre uma mudança de “sumidouro” para “fonte” de CO2 para a atmosfera (Takahashi et al. 2009).

No caso da plataforma continental, Cunha também ressaltou que os dados são insuficientes e muito variáveis. Assim, a pesquisadora enfatiza a necessidade de observações em longo prazo e da integração e disponibilização dos dados de observatórios regionais – lembrando que o SIMCosta é um ótimo começo.

Dentro do BrOA, o Programa PIRATA (Prediction Research Moored Array in the Tropical Atlantic), uma cooperação entre pesquisadores brasileiros, norte-americanos e franceses, estuda interações entre o Oceano Atlântico tropical e a atmosfera.

Dezoito boias foram dispostas desde meados da década de 1990 na região. Além disso, cruzeiros foram realizados para mensuração dos parâmetros do oceano e, a partir de janeiro, o navio Antares, da frota brasileira, iniciará medições.

Moacyr Araújo, do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco, um dos pesquisadores que fazem parte do PIRATA, informou que uma ideia que está sendo viabilizada é usar as ilhas oceânicas como observatórios naturais, a exemplo do Atol das Rocas, Fernando de Noronha e São Pedro São Paulo. Em Noronha, ele comentou que há planos de instalar um sensor de CO2 em breve.

Araújo também participa de um grupo de pesquisadores que está há quatro anos reunindo a chamada ‘literatura cinzenta’, de mestrados e doutorados, uma “mineração” de dados, segundo ele.

Outro projeto importante que ele contribui é o INCT-AmbTropic, que visa investigar os processos, dinâmica e funcionamento da zona costeira, plataforma continental e oceano, incluindo a pluma do Rio Amazonas.

No outro extremo do país, na FURG, o Grupo Oceanografia em Altas Latitudes (GOAL) também faz parte do BrOA e vem desenvolvendo pesquisas, entre outras, sobre a variabilidade espacial e temporal dos fluxos líquidos de CO2 (FCO2) na Península Antártica, na quebra da plataforma continental da Patagônia Argentina e na margem continental do Atlântico subtropical brasileiro.

Apesar da alta variabilidade na distribuição do FCO2 devido às complexas interações entre processos biogeoquímicos e físicos, os estudos indicam que o carbono antropogênico está presente na interface ar-mar. Contudo, Rosane Ito, coordenadora do Laboratório CO2 Marinho, lembra que é preciso mais pesquisas.

Ela lembrou mais uma vez a expectativa que o SIMCosta – elaborado para fazer mensurações de propriedades físicas, meteorológicas e biogeoquímicas ao longo da zona costeira – venha suprir a ausência de dados de pH na costa brasileira. Outros projetos também estão sendo aprovados, completou.

Imagens: GOA-ON/NOAA; Carbon Wave Glider/NOAA; Mussismilia braziliensis/Amanda Ercília; Navio oceanográfico/BrOA; Navio oceanográfico na Antártica/GOAL

Fonte: 19/12/2013   -   Autor: Fernanda B. Müller   -   Fonte: Instituto CarbonoBrasil